Takato Yamamoto e sua melancolia erótica

Artista e mangaká adepto do ero guro usa sexualidade e violência para mostrar o inferno que habita a mente.




































O ero guro é um controverso movimento artístico japonês. Misturando sexo e violência em ilustrações que, desde os anos 30, retratam lendas, crimes, pesadelos e desejos obscuros, este não é um estilo para quem tem estômago fraco. No entanto, ele está longe de ser apenas uma demonstração de erotismo grotesco. Por trás de imagens tão horrendas, há mensagens a serem desvendadas, além de um importante vínculo com a história do Japão e com a própria concepção do que é arte. Entre seus adeptos, Takato Yamamoto e suas ilustrações melancólicas são um grande exemplo da profundidade de significados que esse movimento pode ter.


O grotesco nas artes e seu contexto histórico


O teor da arte sempre é um reflexo do tempo em que ela é produzida e, o começo do século XX é um grande exemplo disso. Em um mundo tumultuado por avanços tecnológicos, conflitos bélicos, nascimento e queda de ideologias, a arte é uma forma de dar voz aos pensamentos e sentimentos. O Fauvismo francês usa cores primárias para pintar um mundo colorido, como que aos olhos de uma criança. Na Itália, o Futurismo carrega traços nervosos de uma geração que conheceu a velocidade das invenções tecnológicas e urbanização. E o Dadaísmo, incompreensível para muitos, foi nada mais que um deboche com a incoerência que a Primeira Grande Guerra trouxe ao mundo.

Pintura fauvista "A Siesta", de Paul Gauguin.

Da mesma forma, a feiura, a violência, o sexo e o profano não são elementos arbitrários das obras de arte. Talvez um dos exemplos mais conhecidos, Guernica, de Picasso, mostra corpos agonizantes como forma de expôr o sofrimento trazido pela guerra. No Brasil, Portinari pintava seres esqueléticos, sombrios e com aspectos monstruosos como denúncia das péssimas condições de vida dos retirantes.

"Assassinato de Ohagi
por Saisaburou" (1867)
No oriente, a situação não é diferente. A arte está intimamente ligada a hábitos culturais, “saudáveis” ou não, e ao momento histórico. Em seu livro Absolute Erotic, Absolute Grotesque: the living, dead, and undead in Japan’s Imperialism, 1895-1945, o pesquisador Mark Driscoll conta que, em épocas de guerra, narrativas em que sexo e violência se misturam têm sua produção intensificada. No final dos anos 20 e início dos anos 30, período em que o Japão tinha uma transição recente para uma cultura capitalista e estava em conflito com a China, diversos periódicos sobre esses temas surgiram. Descrições de crimes sexuais, relatos de ações de soldados em terras inimigas, narrativas fetichistas e homoeróticas eram lidos com choque e fascínio pelos japoneses. A guerra era quando os personagens poderiam se libertar e serem preenchidos por instintos primitivos de violência, desejo e o poder que eles traziam. Ou seja, mesmo algo perturbador como ero guro possui um contexto de produção e consumo que permite compreender o que ele significa.

A obra de Takato Yamamoto


Nascido em 1960, o trabalho de Takato Yamamoto tem como base o tradicional estilo de pintura japonesa ukiyo-e. Nesse estilo, paisagens, cenas do cotidiano, festividades, lendas e situações sexuais eram retratadas em imagens livres de pudores. Combinado a essa técnica, Yamamoto traz também referências a elementos da cultura pop e do ocidente, como o mangá, o Surrealismo, a estética gótica, o Cristianismo, os vampiros, o art nouveau, entre outros. O resultado é um material rico em símbolos que, mesmo com um ar tradicional, remete a temáticas atuais. Apesar de ter apenas um mangá publicado, o curto, poético e onírico Yami no Hou e, seu trabalho nas artes visuais é bem mais conhecido.

Página de "Yami no Hou e" ("Em Direção à Escuridão").

Em um primeiro olhar, o que nos chama atenção é o caráter grotesco dos desenhos. Esqueletos, corpos deformados em decomposição, seres monstruosos, sangue, ferimentos… A violência tem sua marca em corpos despidos. Mas, ao contrário da maior parte dos artistas guro, Yamamoto tem uma abordagem bem mais “leve”. Isso porque não vemos ações violentas, mas sim imagens que ou antecipam ou são consequências da violência. Você não vê monstros enfiando a língua nos olhos de garotas, como típico da obra de Suehiro Maruo. Isso é interessante, pois tira a ênfase do ato de violência em si e coloca nos participantes.

Cenários abstratos criam
ambientação onírica.
Tirando os olhos da brutalidade e nudez expostas, olhemos para o cenário. Cenário? É difícil identificar precisamente onde seus personagens se situam. Mesmo que sejam visíveis elementos concretos, reais, identificáveis no nosso ambiente, há um forte tom onírico no espaço de suas ilustrações. As paredes são quebradas e rachadas, com substâncias viscosas extravasando por suas fendas. Como se elas fossem um ser vivo e monstruoso nesses ambientes decrépitos. O céu domina parte significativa dos quadros, como se elas fossem imagens extraídas de um vazio. Então por mais brutais e bizarras que sejam as cenas exibidas nas ilustrações, temos a sensação de que elas não se passam no mundo palpável. Elas são frutos da mente, pesadelos retratados.

Agora olhemos para os personagens que participam das imagens. O que chama a atenção em primeiro lugar neles são seus misteriosos olhares. É difícil definir o que eles sentem. Na situação em que eles estão, seria natural acreditar que estivessem horrorizados, assustados, sentindo dor ou chorando. Mas não há nada. Eles têm uma expressão vazia. Porém, por trás dessa apatia, há uma melancolia profunda, um sentimento misto de tristeza e resignação. Como se eles compreendessem bem a situação horrenda em que estão, mas não conseguissem ter forças para lutar. Ou então, eles já se acostumaram a passar por isso. Já se familiarizaram com seus monstros e aceitaram seus pesadelos.

Os personagens possuem sempre um olhar misterioso e melancólico.

Dessa forma, acredito que, em suas ilustrações, Takato Yamamoto tenta expressar infernos mentais de maneira literal. Traumas, fobias, problemas psicológicos, angústias: tudo ganha formas grotescas e torturam o corpo de suas vítimas. Mas nada é retratado de maneira explícita. Não costuma haver indicativos do que tudo ali de fato representa. O significado de suas obras, assim, depende muito da interpretação pessoal e da conexão feita com a obra.

Existe um forte simbolismo
nos elementos de suas obras. 
Como exemplo, farei a análise de uma de suas ilustrações. Nela, uma pessoa é vista deitada, envolta em um manto vermelho e com um cinto amarrado em seu pescoço. Em cima dela, um ser monstruoso e abstrato observa-a. Seu aspecto é confuso mas é possível apontar dois elementos que se destacam: um único olho imenso, localizado logo acima do rosto dela, e um pênis ereto na extremidade inferior. O par apenas se encara, sem que uma ação de fato seja tomada, ainda que ela esteja em uma posição mais vulnerável. Existem vários elementos que me fazem interpretar o desenho como a representação da ansiedade de uma vítima de violência sexual. O manto vermelho remete à figura da Chapeuzinho Vermelho, menina que, na história original, era violentada pelo Lobo Mau. O cinto no pescoço remete a uma coleira, que simbolizaria a submissão e desumanização de seu corpo. O monstro seria uma representação do agressor que, devido ao trauma, não teria suas feições recordadas com objetividade. Pode ser que apenas certos aspectos, como o olhar e o pênis tenham ficado gravados na memória da vítima. O desenho, assim, seria um pesadelo dessa pessoa que, após sofrer um abuso, é atormentada por uma criatura que ameaça-a incessantemente.

Agora voltando a falar de suas obras em geral, outra relação que consigo estabelecer com os desenhos de Yamamoto é a temática queer. Em muitos casos, é bastante difícil identificar se seus personagens são homens ou mulheres. Os corpos são pequenos e sem pelos, as feições suaves, as roupas marcam pouco suas silhuetas… Além disso, quando despidos, é comum vermos rostos “femininos” e delicados em personagens que exibem, ou escondem parcialmente, o pênis. Ou então, homens e mulheres agrupados com rostos tão semelhantes que só é possível identificar o sexo graças a sua nudez. O homoerotismo, tanto masculino quanto feminino, também é um tema recorrente. Assim, não é um exagero acreditar que o universo de angústia, dores e traumas retratado por Yamamoto também possa ser uma expressão da dor que é ser queer, estranho, diferente, desajustado, em uma sociedade que não reconhece seu corpo, seu desejo e seus sentimentos.

Androginia e homoerotismo são temas recorrentes.


E lembram quando falei lá em cima que a arte é sempre reflexo do momento em que ela é produzida? Pois bem, o trabalho de Takato Yamamoto me faz pensar bastante em como a saúde mental encontra-se deteriorada na geração atual. Da mesma forma que o ero guro trazia muito do imaginário do Japão em guerra, consigo imaginar Yamamoto trazendo um retrato da apatia, das angústias, da banalização do sexo e da violência presentes hoje. Com índices de depressão, ansiedade e outras doenças psicológicas crescentes, vivemos em uma comunidade de pessoas tão quebradas quanto os personagens de suas ilustrações.

Arte é, em síntese, expressão. Expressão de amor e de beleza, mas também de medo, de angústia e melancolia. À partir do momento que almeja transmitir algo, o ero guro também tem suas pretensões artísticas e deve ser lido como algo além da mera perversão. Claro, isso não quer dizer que não existam violência gratuita ou apelação sexual nos mangás. Mas, o trabalho de Takato Yamamoto é um exemplo de como esses elementos podem significar mais do que aparentam.

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