Livros

Resenha: A vegetariana

Um romance perturbador sobre violência, loucura, sexualidade e o papel da mulher na sociedade


A vegetariana é um romance sul-coreano escrito por Hang Kang. Vencedor do Man Booker International Prize de 2016, o livro foi publicado em 2018 no Brasil, traduzido diretamente do coreano, pela editora Todavia.

Sinopse:


“… Eu tive um sonho”, diz Yeonghye, e desse sonho de sangue e escuros bosques nasce uma recusa vista como radical: deixar de comer, cozinhar e servir carne. É o primeiro estágio de um desapego em três atos, um caminho muito particular de transcendência destrutiva que parece infectar todos aqueles que estão próximos da protagonista. A vegetariana conta a história dessa mulher comum que, pela simples decisão de não comer mais carne, transforma uma vida aparentemente sem maiores atrativos em um pesadelo perturbador e transgressivo. Narrado a três vozes, o romance apresenta o distanciamento progressivo da condição humana de uma mulher que decidiu deixar de ser aquilo que marido e família a pressionaram a ser a vida inteira. Este romance de Han Kang tem sido apontado como um dos livros mais importantes da ficção contemporânea. Uma história sobre rebelião, tabu, violência e erotismo escrita com a clareza atordoante das melhores e mais aterradoras fábulas. Esta tradução, diretamente do coreano, restitui o estranhamento da obra original.

Alguns livros se destacam pela escrita; outros, pela história; ainda outros, pelas personagens. Em A vegetarianaHan Kang consegue acertar nesses três pontos e, assim, atrair até o leitor mais desatento para dentro de sua narrativa. Dividido em três partes, o livro é narrado em perspectivas, tempos verbais e pessoas diferentes, e perante ao conteúdo da obra, a escolha de pontos de vista não é um simples detalhe, é um dos pontos mais importantes para a sua interpretação.

Yeonghye, uma mulher de vida simples e sem graça, começa a ser notada quando decide virar vegetariana. Seu marido, o narrador da primeira parte, sempre esteve com ela por ela ser comum demais – sem desejos, sem estilo, sem opiniões –, não por amor ou qualquer coisa do tipo, então não é de se surpreender que, quando Yeonghye toma sua primeira atitude, ele se sinta desconfortável.

Afinal, não é como se ela tivesse parado de comer carne apenas porque queria salvar os animais. Yeonghye tinha sonhos recorrentes – o mesmo pesadelo, na verdade – e achou que pararia de tê-los se parasse de ingerir carne e, eventualmente, quaisquer alimentos provenientes de animais, adotando, dessa forma, um estilo de vida que vegetariano e vegano. Isso interfere drasticamente na vida de seu marido, porque Yeonghye não deixa nenhum pedaço de carne entrar dentro de casa, e como é ela que faz a comida, as refeições de seu marido se tornam menos proteicas, o que ele repudia.


A questão do vegetarianismo toma uma proporção tão gigantesca que abala as estruturas não somente da casa de Yeonghye como também de toda a sua família. Por causa dessa simples mudança, observamos ao longo do livro a degradação do corpo e da mente de Yeonghye, mas, embora a história seja sobre ela, ela praticamente nunca tem a oportunidade de contá-la.

Sendo assim, a segunda parte é narrada em terceira pessoa com foco na perspectiva de seu cunhado. Denominada “A mancha mongólica”, aqui observamos a obsessão dele por Yeonghye desde que descobriu que, mesmo já sendo adulta, ela ainda tinha uma mancha mongólica esverdeada na região das nádegas. Se na primeira parte da narrativa a mulher era desprezada, nessa ela é colocada como um objetivo a se alcançado – sexualmente falando. Yeonghye é vista como um prêmio, um fetiche, um símbolo de prazer indescritível, todavia, é possível perceber que o ato sexual significa coisas diferentes para cada personagem da história.

Por fim, a terceira parte, dois anos depois da primeira, é a única narrada por uma mulher, e, por isso, a única que não coloca o corpo sexualizado em pauta. Acompanhamos a loucura de Yeonghye pela perspectiva de sua irmã mais velha, dessa maneira a história se torna ligeiramente mais clara para nós. Ainda narrado em terceira pessoa, mas dessa vez no presente, vemos um pouco da infância das irmãs e do lugar da mulher na sociedade sul-coreana – que pode se relacionar a mulheres de todos os cantos do mundo. Apesar disso, terminamos a leitura com mais perguntas do que respostas, um final aberto e várias coisas a se pensar, dando a entender que A vegetariana não é um livro para ser lido apenas uma vez, e sim para ser lido e relido até, algum dia, fazer sentido.


Han Kang não escreve de forma clara. Embora sua escrita seja, por vezes, crua e cristalina, sua narrativa é enevoada e cheia de metáforas. O livro foi inspirado na frase “Acho que os humanos deveriam ser plantas”, de Yi Sang, e,  por isso, Yeonghye, ao longo da história, tenta se afastar da violência de seus sonhos e de seu cotidiano para não fazer mal a ninguém. Contudo, o simples ato de ir contra essa sociedade a torna uma inimiga natural da maioria, e isso faz com que a obra de Kang não seja tanto sobre agressividade quanto sobre o papel da mulher na sociedade.

A edição da Todavia, além de muito bem traduzida por Jae Hyung Woo, é muito bonita e de agradável leitura. O papel utilizado foi o Munken print cream 80 g/m², um papel amarelado não muito fino, nem muito grosso e de toque suave, e tanto a mancha do livro quanto a escolha de fonte e o espaçamento foram acertadas.

Embora não seja capaz de explicar com palavras tudo o que me marcou na obra, posso dizer que essa ligação entre o ser mulher e a loucura lembra, de certa forma, o conto O Papel de Parede Amarelo, de Charlotte Perkins Gilman, só que muito mais pesado e com cenas altamente explícitas. Sendo assim, A vegetariana é uma leitura mais do que recomendada, mas fique atento: é preciso ter estômago para digerir a criação de Han Kang.

Ficha Técnica

Título: A Vegetariana
Título original: 채식주의자
Autor: Han Kang
Tradução: Jae Hyung Woo
Editora: Todavia
Edição: 1ª ed., 2018

Estudante de Letras – Português-Inglês na UFMG, mas mora em São Paulo. Amante de arte independente, mas vê tudo o que é mainstream. Assiste a filmes, séries e animes, mas também lê livros e ouve música o dia todo. Diz que quer ser escritora, mas nunca escreveu uma palavra na vida... Quer dizer, só algumas.


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