Ensaio: Coisa Mais Linda – e a cultura do feminicídio

A série Coisa Mais Linda da Netflix mais uma vez faz um trabalho impecável e apresenta discussões necessárias, com temas tão atuais que nem parece 1960

Malu descobre que a amiga Lígia havia morrido


Na segunda temporada de Coisa Mais Linda, mais uma vez a série da Netflix faz um trabalho histórico digno, ao mostrar porque mulheres sempre foram tratadas como propriedade. Bem, se você ainda não assistiu a nova temporada da série, ou não gosta de spoilers, não indico a leitura desse artigo.

No final da primeira temporada de Coisa Mais Linda, Augusto, marido de Lígia, atira em Malu e na esposa. Quando começa a segunda temporada Pedro, marido de Malu, aquela gracinha que abandonou a mulher sozinha com o filho que depois precisou se reinventar e abriu o Coisa Mais Linda, volta de sua crise existencial e assume o seu bar. É, pessoas, o bar estava no nome do cara, pois existia uma lei que proibia mulheres de ter um negócio próprio. Atraído pelo sucesso da mulher, o alecrim dourado volta de seu retiro para assumir o que é seu de direito. Sim, era dele por direito, a lei garantia isso.
O que significava que o cara largava a mulher a própria sorte, a mulher se virava como podia, entretanto, em caso de sucesso o cônjuge podia voltar e assumir o que era dele, garantido por lei. Aliás, ninguém questionou o que a criatura fez durante o tempo que passou fora, nem a legitimidade do negócio da mulher, quem mandou ela falsificar a assinatura do marido? Afinal, o sistema da época não era responsável pelas decisões equivocadas que as pessoas eram obrigadas a tomar em momentos de desespero. Ademais, não vou ficar discutindo se a atitude de Malu, Maria Casadavell, foi correta, só posso dizer que falsificação é crime e o que ela fez bem questionável.

Lígia e Augusto casal feliz em frente as câmeras, mas histórico de violência doméstica


Numa das cenas mais emblemáticas, temos o advogado de Malu dizendo “fizemos isso para proteger vocês”. Mas é muita generosidade, né, gente? No que Malu rebate “nos proteger da nossa própria liberdade”. Um dos melhores diálogos da série, mas por que eu desviei do assunto? Para contextualizar.
Ao longo da história, tivemos diversas leis que impediam as mulheres de ir e vir (como o artigo 230 da Constituição Federal de 1960), que ainda estava em vigor na época em que os acontecimentos da série ocorrem. Como a lei que proibia mulheres de andar sozinhas sem a autorização do marido, e votar, entre outras que só de pensar dá vontade dá até arrepio.
Em outra cena, o viúvo de Lígia, Fernanda Vasconcellos, procura Malu para dizer que estava arrependido do que fez, e que voltou para pagar por seu erro, segura essa informação.

Malu descobre que o marido está gerenciando o Coisa Mais Linda

O julgamento de uma mulher que batalhou pela própria existência

Então começa o julgamento, e o show de horror também, uma vez que de vítima, Malu passa a ser considerada culpada, pois atitudes obrigaram o pobre viúvo a matar a mulher para defender sua honra. Já que, desde que Malu voltou a conviver com sua amiga Lígia, a personalidade de sua amada esposa mudou completamente. Dado que Lígia começou a cantar no Coisa Mais Linda e queira o desquite.
Enfim, a responsabilidade pelo fracasso do casamento era toda de Malu, não dele, que era violento, espancava e estuprava a esposa. Só para deixar bem claro, sexo sem consentimento é estupro, mesmo que os envolvidos sejam casados. Visto que não é não.
No final do julgamento Augusto, Gustavo Vaz, foi condenado pelo assassinato de Lígia, todavia a tentativa de matar Malu passou batida. Só que o pior ainda estava por vir, Augusto pegou uma pena leve e respondeu em liberdade condicional por ser réu primário e um membro respeitável da sociedade.
No decorrer de todo o julgamento, somente Malu foi humilhada de todas as formas, e o pobre marido justificado por defender sua honra. Então voltando ao dia que Augusto foi ao encontro de Malu para avisar que tinha voltado para pagar por seu erro, aquilo, de fato, foi uma ameaça velada. Pois, ele tinha certeza de que sairia incólume das acusações.

Malu e Thereza conta a história de Lígia no rádio

Crime passional: precisamos dar um basta

É essa certeza da impunidade que colabora com o aumento dos casos de feminicídio no país, além de toda uma estrutura social que durante muito tempo permitiu que homens tratassem mulheres como quisessem sem sofrer nenhuma punição.
Medida protetiva não é efetiva se não existe suporte a mulher, se as penas, quando existem, são brandas. Por fim, se os números da violência contra a mulher só aumentam é indicativo que alguma coisa está errada.
No final das contas, Augusto deu seguimento a sua vida, encontrou uma mulher igualzinha a que ele matou. Se Lígia era tão péssima esposa por que ele arrumou uma substituta com as mesmas características físicas? Infelizmente, Lígia foi a única que perdeu sua vida, esse tipo de reparação não é possível. O que precisamos é evitar que outras Lígias percam a vida.
A segunda temporada de Coisa Mais Linda traz mais reflexões que a primeira, simplesmente maravilhosa.


Kika Ernane, Karina no RG, e sou multitasking (agora que aprendi o significado do termo segura). Uma mulher como muitas da minha geração, que ainda não descobriram como aproveitar a liberdade que lutaram tanto para conseguir. Muito menos administrar todas as tecnologias disponíveis. Enfim, estou sempre aprendendo.


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