Séries & TV

Crítica: Cinco Dias no Hospital Memorial (Apple TV+)

Caminhem nas águas, crianças, porque Deus irá agitar essas águas.


Nova Orleans. Louisiana. Estados Unidos. Agosto de 2005. Furacão Katrina. A estrutura e o funcionamento dos hospitais Memorial e LifeCare, que partilham o mesmo edifício, foram gravemente comprometidos. Aos poucos, a água começou a subir, assim como o medo, e a esperança do resgate chegar começou a sumir. 2 mil pessoas ilhadas por 5 dias em um hospital sem absolutamente nada. E, no final de tudo, a capela se tornou um necrotério, bem como a recepção. 45 cadáveres largados no meio de tanta bagunça. O que aconteceu durante esse período de tempo para chegarmos a esse ponto?

O fator fidelidade

Um esclarecimento antes de tudo: Esta produção original da Apple TV em parceria com os estúdios ABC Signature é baseada em fatos reais, sendo uma adaptação da obra “Five Days At Memorial”, resultado da investigação realizada pela jornalista e produtora Sheri Fink sobre o ocorrido. Me atentarei somente a analisar aquilo que foi adaptado para tela por John Ridley (Ben-Hur, 12 Anos de Escravidão) e Carlton Cuse (Lost, Locke & Key, Bates Motel).
Indo direto ao ponto, a primeira metade da série, que corresponde aos 5 dias que levam o título da produção, consegue transmitir, com louvores, o estado de calamidade que a cidade inteira se encontra. Isso é evidente ao notar que a produção, graças ao orçamento generoso que recebeu, para ser tão fiel quanto possível, construiu diversos cenários e inundou-os ao ponto de até mesmo barcos reais serem utilizados, tanto nos estúdios em Toronto, como na própria Nova Orleans, nas gravações como meios de transporte.

Levou um tempo para eu perceber que isso não era uma foto dos bastidores da série.

Não só os cenários principais, como aquelas pequenas cenas, que só foram utilizadas uma única vez para complementar o estado deplorável que a cidade se encontrava, também receberam o mesmo tratamento. E elas ainda foram brilhantemente inseridas junto a filmagens e reportagens reais da época com o intuito de que o espectador fosse constantemente lembrado de que sim, aquilo tudo aconteceu. Sim, terríveis decisões foram tomadas durante aquele período de tempo. 

Sim, o próprio Governo demonstrou incapacidade (ou ignorância) de prover suporte àqueles que mais necessitavam. Sim, as corporações não ligam para você, por mais que digam que sim. Comportamentos esses que continuam até hoje.

O fator humano

Em relação ao elenco, sem exceção, a produção acertou bastante na escalação. Devo dar o destaque, mais que merecido, a Vera Farmiga (Dr. Anna Pou), Cherry Jones (Susan), Cornelius Smith Jr. (Dr. Bryant King), Julie Ann Emery (Diane) e Adepero Oduye (Karen). Não digo isso só porque eles realmente estavam no centro de todo esse desastre, mas esse fato permitiu que a direção de Ridley e Cuse exigisse ainda mais dos intérpretes. 

O uso e abuso de ângulos de câmera mais íntimos, mais fechados, não só no cenário, como, principalmente, no rosto dos intérpretes pedia por uma atuação que fosse na medida exata. O desespero tinha que ser exato. A incredulidade tinha que ser crível. Era preciso olhar nos olhos daquelas pessoas e perceber a desesperança crescendo a cada novo episódio. E todos eles passaram no teste com honras, especialmente quando o dia final chegou.


Eu, pessoalmente, considero o quinto episódio o melhor da série. Ele é a culminação de tudo. Porque ele prova que, até perante a possibilidade real de resgate, não existe alívio. Só uma realidade fortíssima na cara de personagens e espectador: Nem todos serão resgatados. E esse fato permitiu que muitos membros do elenco recorrente, especialmente alguns pacientes que o roteiro explorou em episódios anteriores, pudessem encerrar sua participação na trama de forma excepcional com cenas fortes, angustiantes, de fazer doer a alma, principalmente quando você se lembra que aquilo realmente aconteceu. Inclusive aquela cena que, com certeza, algumas pessoas vão dizer que foi apenas pelo choque.

O fator verdade

Contrastando com o tom mórbido dos 5 primeiros, os 3 últimos episódios são mais normais e priorizam a continuidade das cenas introdutórias dos capítulos anteriores (a descoberta dos corpos e depoimentos de funcionários do Memorial), retratando a investigação solicitada pelo Procurador Geral do Estado de Louisiana sobre os 45 corpos. Embora pode-se argumentar que esse final poderia ter sido condensado em somente um capítulo, acredito que isso prejudicaria a retratação dos eventos por causa da falta de tempo.


Michael Gaston (Arthur) e Molly E. Hager (Virginia), os mesmos que descobrem os corpos na cena introdutória da série, como condutores da investigação, entregam o suficiente para o espectador acompanhar a situação, embora nenhum deles tenha alguma cena memorável em relação ao núcleo do hospital e. vez ou outra, me senti incomodado com uma quantidade razoável de cenas em que a postura dos personagens, especialmente a entonação da fala, não parecia combinar com o tom da cena.

Eu não possuía altas expectativas, mas estava aguardando que, dado o cliffhanger do capítulo anterior, os envolvidos seriam confrontados diretamente em júri popular para ter a certeza final se o que aconteceu nas últimas horas do dia final (não sei por que, mas essa sentença me lembrou de Majora's Mask) foi eutanásia ou assassinato. E o capítulo começa por esse caminho, mas as crescentes mudanças de percurso, seja por manipulação, autopreservação, cortinas de fumaça, o que for, levam a um lugar inesperado onde a evidência por si só não é mais suficiente. E a resposta final não é definitiva, deixando o questionamento para o espectador refletir.

O fator Apple


Cinco Dias no Hospital Memorial (Five Days at Memorial) é mais um grande acerto do serviço de streaming da maçã, juntando-se a Ruptura (Severance) como uma das minhas maiores surpresas neste ano. Alguns chegam até a comparar o serviço com a HBO e, embora ainda veja isso com certo grau de incredulidade, reconheço que a qualidade técnica das produções, junto à pequena quantidade de episódios, até mesmo em séries não-limitadas, cada vez mais se aproxima daquelas produzidas pelo famoso canal a cabo. Se, derradeiramente, o serviço chegará a esse patamar, só o tempo dirá.

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